A primeira parte do meu conto canastrão você encontra aqui.
(…continuação)
Não é você que escolheu o seu carro, seu carro que escolheu você.
Cinco dias avançaram na semana, o movimento da lavagem estava de bom para ótimo, e os sócios eram só elogios para o seu gerente, ou para o pró-labore seguinte deles.
Um relaxado Beto, sentado na sala de seu apartamento, relembrava da primeira cliente da semana, que trouxe, além da prosperidade, uma profusão de confabulações.
Aquela Chevy tinha capota marítima, não estava rebaixada, e estava toda embarrada. A morena devia utilizá-la em estradas ruins, de chão batido, e não desejava sujeira no que carregava na caçamba. Deveria trabalhar com entregas, quem sabe flores, ele pensava.
O carrinho, apesar da sujeira que chegou naquela segunda, estava alinhadinho, íntegro, e em poucos minutos de pensamento, a morena já era batalhadora, humilde, zelosa com seu meio de transporte, e, ao mesmo tempo, seu ganha-pão.
Zelosa também com a sua aparência. E lembrou-se dos cabelos soltos, de um preto que brilhava, em total sintonia com cor da armação dos óculos, que enfeitavam o rosto dela. E também da saia que voava lépida e leve, das pernas de quem provavelmente deveria malhar, e aquela tatuagem que a telinha da câmera, infelizmente, não destacou. ‘’Seria mesmo um mapa incompleto ou o lavador viu errado?’’ E pela câmera não se sente cheiro. ‘’Ela ainda estava cheirosa. ’’ Realmente, era daquelas mesmo de se apresentar para a mãe com gosto.
E Beto riu, já tendo pensamentos similares aos do seu funcionário. E logo procurava sair do mundo dos sonhos e entrar no dos planos para o final de semana. Quem sabe dar um pulo no litoral gaúcho, conseguindo ainda gastar um pouco de dinheiro com ele, cortar os cabelos, comprar roupas, um bom perfume, procurar um carro mais jovem, e como não tinha família, talvez uma caminhonete, com uma bela capota marítima. E riu novamente.
Aquele final de semana passou mesmo devagar, cada hora rendendo ao máximo. Como todos os finais de semana daqueles que estão sem grandes preocupações na vida, eles sempre passam mais devagar dos que os daqueles que batalharam dia após dia abaixo de mal tempo, e, quando se dão conta, já é segunda feira novamente; como dois copos que estão ao relento, sendo que apenas um enfrentou uma pancada de chuva no dia anterior, ele será, pois, o primeiro a transbordar sob o sereno, na calmaria da noite.
E a segunda semana de maio começou cedo. Beto, como sempre, foi o primeiro a chegar. Mas alterou a ordem das suas atitudes. Ligou o computador e, enquanto preparava o mate matutino, conferia seguidamente a imagem das câmeras de controle, ainda mostrando um estacionamento vazio e sem movimento, afinal, nem os funcionários haviam aparecido ainda no local.
E o circo começou a funcionar, quarenta minutos depois, o mate amargo já subia pela bomba de Beto, os funcionários já estavam aos seus postos, ou falando das aventuras reais do final de semana ou inventando algumas imaginárias, pois, num grupo de lavadores de carro, não se pode sair limpo de uma roda de papo furado.
E Beto olhava tudo através do computador da sala de seu escritório, ansioso, esperando matar a curiosidade sobre o primeiro cliente da semana. Seria ela?
Não foi. Após vinte minutos de conversa, agora os funcionários tinham um nada atraente sedan Toyota preto para limpar, de uma nada atraente, porém simpática, senhora. “Carros pretos sempre voltam”. Pensou Beto, enquanto calculava as férias de um funcionário. Logo entra o segundo carro da semana. E o Del Rey champanhe indicava que ela começava de forma, ao menos, coerente.
Aquela manhã passou rápida. A visita inesperada do representante comercial da empresa de esponjas, e a reunião que se seguiu, ocupou boa parte dela, terminando na churrascaria, cortesia do fornecedor. Do almoço Beto partiu para seu apartamento, tomou um banho, reviu os gols da rodada do final de semana e retornou ao emprego.
Ao chegar percebeu, de cara, a traseira da Chevy, já em processo de lavagem, e decidiu nunca mais comprar aquelas esponjas. Pelo barro que escorria pelas laterais e se acumulava na brita do pavimento, imaginou o estado que o carro chegara, dessa vez, ainda mais suja que na semana anterior.
Circulou algumas vezes ao redor do carro, pensando se recebia a cliente ou não, e foi ao escritório, mas antes uma vez mais fez a higiene bucal. A fez pensando em alguns discursos, em como a abordar, simulando defronte um espelho, para depois voltar para sua mesa de trabalho.
Na metade da tarde o estacionamento era um mar organizado de carros. Em fila indiana os que aguardavam, por ordem de chegada. Sob as rampas os que estavam fazendo a lavagem completa, ao lado destes, no solo, os que recebiam a lavagem simples, e, num estacionamento, como se fossem parte da vitrine de uma joalheria, os reluzentes carros lavados.
E entre eles, uma radiante Chevy 500 branca, com pretinho nos pneus, os deixando no mesmo tom de cor da capota marítima, calotinhas pretas no centro das rodas ainda originais, vidros verdes, um ideograma japonês na tampa traseira, luz de neblina no spoiler dianteiro e toda a atenção de Beto, que do seu escritório a namora, pela câmera de vigilância, e pensa em que atitude tomar quando a morena chegar.
Mas acontece um movimento diferente, e Beto voa ao encontro daquela Chevy.
Beto vê pela câmera um homem baixo, magro e mal vestido, chegar da calçada e caminhar em direção à caminhonete. Ele faz duas voltas ao redor dela, abre a porta do motorista, entra e rapidamente Beto já está ao seu lado, na janela.
‘’Posso ajudá-lo?’’
‘’Não, ela ficou uma beleza. ’’
‘’O senhor seria o dono do carro?’’
O rapaz abre pacientemente parte da porta, levanta-se, era realmente baixo, deixa metade do corpo fora do carro, estende o braço sobre o teto e responde:
‘’Na verdade eu dei esse para a minha esposa. Vim apenas retirá-lo, a lavagem já foi, inclusive, paga por ela. ’’
E Beto, frustrado, e com medo das conclusões óbvias que seu olhar poderia passar, abaixou a cabeça, dando de olhos com uma aliança na mão esquerda do baixinho. Voltou ela então para o céu, e, durante o novo trajeto, no pulso repousado sobre o teto branco, descobriu um mapa do Rio Grande do Sul incompleto, e também que, aquele baixinho, completava o quebra-cabeça criado por seu funcionário.
‘’Malditas tatuagens de casais felizes. ’’ Pensou.
Sorrindo amarelo, desconcertado, falso, desejou uma boa semana para aquele que tanto invejava. Voltou depois devagar ao seu escritório, querendo novos desafios no seu começo profissional, talvez correr mais riscos, em um emprego onde realmente aplicasse algo que aprendeu na sua faculdade.
E sorriu debochado. ‘’Acho que vou comprar mais esponjas na próxima visita daquele representante. ‘’ Pensou, desta vez, agradecido.
Parabéns pelo blog rafa, conteúdo e diversão juntos, muito bom mesmo!! Abraçao
Valeu Maurizio! É umpassatempo que eu inventei, por gostar de escrever, e que tem dado muito certo.
Abraços!