Quem entra naquele estacionamento não demora a perceber que ali existe algo estranho. Entre as sessenta vagas existentes, uma ficou fora das últimas duas reformas do local; pintura da parede encardida, chão com vegetação alta, um Del Rey estacionado.
A cápsula do tempo, que volta para o início de 1988, época em que o carro foi desligado pela última vez, não é nada discreta. Externamente aparecem sinais da distância com o ano em que José Sarney começou a presidir o Brasil – talvez um observador mais atento e curioso perceba o jornal amarelado, com Marco Van Basten e sua Bola de Ouro, no banco traseiro. A ação do tempo sobre o imponente Ford é cruel.
O luxuoso três-volumes do ano de 1984, na cor champagne-metálico, apodrece dignamente em meio aos seus nômades e frios colegas modernos. Ferrugem e poeira são abundantes em toda a extensão de sua lataria, alinhada, com todos os frisos pedindo polimento, assim como os seus pneus murchos pedem por ar.
Mesmo quem apenas passa os olhos sobre o sedan nota, por culpa do cenário preservado, o respeito do dono do estacionamento por aquele veículo. E ele faz questão de contar para qualquer novo cliente sobre os curiosos anos de imobilidade do fordinho no seu pátio, e sobre alguns causos que o cercam.
E conta sobre como certa vez uma senhora, dona de um Fiat Prêmio vermelho que estacionava na vaga ao lado, descuidada abriu muito uma das portas, batendo no Del Rey com força. A tinta vermelha marcou por um tempo a porta do carro, como um ferimento aberto que cicatriza; o Prêmio, dias depois, foi atropelado quando estacionado no centro da cidade por um Ford 11000, sem freios e carregado de brita.
Conta também da quantidade de pedreiros que se afastaram dos trabalhos para cuidar de ferimentos durante obras da primeira reforma do local. Uma pá caiu sobre o pé de um quando este tentava empurrar o carro para fazer o piso, outro caiu do telhado enquanto trocava a cobertura; hoje, nem a lâmpada queimada mais próxima é trocada, nem mesmo os cães do pátio se aproximam do Del Rey quando algum gato gordo foge para baixo dele.
E sempre fala que a mensalidade é depositada de forma exemplar, sem um dia de atraso.
O que ele não conta é que existe uma chave reserva daquele carro no seu escritório, e que nos tempos do Collor ele entrou nele para bisbilhotar. Encontrou um interior impecável, bancos praticamente novos, painel sem marcas ou riscos, 51100 km marcados no hodômetro e, no porta luvas, um mistério escrito à mão, guardado dentro do manual do proprietário:
1000km – revisão
5000km – revisão + balanceamento + alinhamento e rodízio
7500km – troca de óleo
15000km – Revisão + bateria + troca de tapetes de borracha (cortesia Ford)
(…)
31000km – Lua de Mel em Garopaba
(…)
45000km – Busquei o primeiro filho na maternidade
(…)
51100km – Restauração integral – lataria e mecânica.
Aquele carro espera o seu dono.
***
P.S.: O estacionamento da foto fica ao lado da minha casa. Aquele Del Rey está parado há muito, muito tempo.
Compre o carro e começe uma restauração. Lembra que vc falou que não sabia o que iria fazer quando o fusca ficasse pronto. É o Del no aguardo.
Deus me livre!!!
Isso me lembrou de uma Versailles Royale branca 4 portas (ou seja, 1995 ou 1996) que tá abandonada (sic) no estacionamento do lado da loja do pai.
Ela tá lá há pelo menos dois anos, mas a sujeira entrega muito mais tempo. Não dá mais pra ver o interior dela, e diz o cara do estacionamento que volta e meia aparece um querendo oferecer uma grana por ela e o dono não vende de jeito nenhum
Isso ta parecendo história do filme Christine, O carro Assassino.rrs (eu acredito nesses trécos).
hehe, pois é Senna. Escrevi esse conto cheio de respeito pelo carro que dorme no estacionamento ao lado. ABS
Quem e o dono dele? E quanto custa?
É de um vizinho que está fora do Brasil e deixou o carro em um estacionamento pago, não está a venda. O resto é ficção.