No começo dos anos 90, era tradição meu avô materno, o Sr. José Silveira, receber os filhos e netos em uma praia minúscula do litoral gaúcho, chamada Santa Terezinha. Ele teve quatro filhas e um filho, somando-se os netos, a casa ficava lotada, e as histórias rolavam soltas entre um chimarrão e um doce caseiro.
Meu avô materno é um cara admirável, daqueles com uma vida recheada. Violinista aposentado da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, dois casamentos, muitos filhos. Aliás, sou abençoado por, aos 27 anos de vida, ter os dois casais de avós vivos e fortes. Meu paterno, Ramos, que chamo carinhosamente de Capitão Durepox, soldado aposentado da ONU, hoje morador da linda Florianópolis, é outro que logo pintará por aqui.
Pois no segundo veraneio em Santa Terezinha, eu já conhecia toda a praia. Jogava bola com os mais velhos, fabricava “carros” a partir de caixas de papelão, para competir na descida das dunas. Jogava também canastra e truco na casa dos vizinhos, criava valetas para sacanear os carros argentinos que exageravam na velocidade, e tentava namorar uma menina da casa de tijolos à vista, a do começo da rua.
E junto de tudo isso, escutava as muitas histórias do Sr. José, que sempre chamei, carinhosamente, de Pedro Bó. Ele, apaixonado por corridas, e pelo Internacional, acompanhou o desenvolvimento dos dois, e vendo que seu neto era gremista, sabia qual assunto me interessava mais.
Contava-me histórias sobre as baratinhas e carreteras, que corriam em provas de longa duração, pelas ruas de Porto Alegre e estradas do Rio Grande. Que levava a família toda para a curva da Praça da Tristeza, bairro da zona sul da capital, e, de lá, via os desengonçados vê-oitos, e outros carros menores, contornarem a curva, para depois, subirem a Av. Otto Niemeyer.
Contava que, na estrada de santo Antônio da Patrulha, antiga rota para o litoral gaúcho, havia uma curva apelidada de curva da morte, depois de uma descida, o terror dos freios a tambor das pesadas carreteiras, que rumavam numa disputa Porto Alegre/Capão da Canoa.
Adorava ouvir sobre tudo aquilo. Sempre pedia para ele repetir o causo do carro que se perdeu na curva da penitenciária da Brigada Militar, no bairro Tristeza. E ele contava, rindo, da carretera que entrou muro adentro, causando o maior estrago. Que a corrida seguia, os presos fugiam, e o piloto recebia voz de prisão. Minha mãe jura que a história é verdadeira.
No Rio Grande do Sul da década de 50, praticava-se um automobilismo diferente. Como não havia autódromos fechados, as corridas aconteciam em provas nas ruas das cidades, e em estradas intermunicipais estado adentro. O calçamento geralmente não existia, era chão batido e buracos. Os carros para essas provas deveriam ser rápidos e confiáveis. Para tal, os insanos pilotos desta época pegavam os Chevy’s e Ford’s americanos, retiravam o que podiam de peso, apimentavam os motores, e alinhavam a sua carretera.
A ligação de meu avô com esses carros aparece até quando relembra uma das maiores decepções que já teve. Ele possuía um dos carros mais bonitos que circulavam por Porto Alegre, um Citroen Traction Avanti 1954 preto, que parava o trânsito. Meu avô conta que, onde quer que fosse, recebia propostas de compra. E acabou cedendo numa irrecusável, ganhou, assim, um gordo cheque sem fundos. A briga para reaver o carro foi grande, mas quando colocou os olhos nele novamente, já tinha sido picotado, transformado em uma carretera.
O Sr. José tinha como ídolo Catharino Andreatta. Mas lembra com carinho de Breno Fornari, Feoli e Menegaz. Ele me ensinou que, passados alguns anos, em provas de estrada, as carreteras comandavam, mas nos circuitos de rua, os DKW, Fusca , Aero-Willys, Berlineta e Gordini davam trabalho. E diz que juntando tudo, o carro mais bonito que já correu por essas bandas é a carretera do Camillo.
Camillo Christófaro tinha velocidade no sangue. Sobrinho de Chico Landi, cresceu vendo os carros de Grand Prix do tio, tornou-se mecânico e piloto. Morador do Canindé, decorava seus carros com um lobo dos gibis do filho, daí o apelido de Lobo do Canindé. E sempre levava o número 18 nos carros, uma homenagem para a sua esposa.
Camillo viu a invasão das carreteras gaúchas nas primeiras Mil Milhas em Interlagos, construiu as suas, e quando percebeu a desvantagem que elas tinham nos circuitos fechados, montou a definitiva, a Carretera n˚18.
Um pacato Chevrolet 37, que servia para transportar a família, foi severamente cortado. Teve seu entre-eixos encurtado e altura diminuida. O pára-brisas foi inclinado, a frente foi substituída por uma de alumínio, inspirada nos charutinhos da F1 dos anos 60. Os freios eram a disco, para frear a cavalaria do motor Corvette.
Camillo possuía uma Ferrari 250TR. Esse carro sofrera um acidente em 1962, onde morreu o piloto Fernando Mafra Moreira, conhecido como Rio Negro. Ele ganhou a sucata de presente de Aguinaldo de Góes Filho, o dono. Deste carro, aproveitou a suspensão traseira De Dion em detrimento dos feixes de mola e também o tanque de combustível, na sua carreteira.
Desta mistura inusitada nasceu o carro mais marcante e vencedor do automobilismo brasileiro. De aspecto único, a carreteira de Camillo angariou uma legião de fãs. O carro correu de 1963 a 1971, nos últimos anos, ganhou largos pneus slick, que lhe deram mais competitividade.
Sua principal conquista foi a lendária Mil Milhas de 1966. Mas tanto ela, como o Brasileiro de Velocidade na Marginal do Rio Pinheiros, sobre um Lamborghini Miura, mais as participações em provas como a inauguração de Tarumã, no RS, em Curitiba, na Guanabara, colocaram esse carro no imaginário de muitos amantes de velocidade do país inteiro, gente como o meu avô, que viu esse esporte surgir e ganhar corpo, e hoje relembra seus heróis e seus carros.
Hoje essa carretera descansa, restaurada, e entusiastas como eu e meu avô, não entendem como empresas brasileiras criam réplicas de AC Cobra e afíns, carros estrangeiros, quando poderiam oferecer aos consumidores uma réplica deste sonho, nascido no Canindé.
Livro Mil Milhas Brasileiras – 50 anos ; Lívio Oricchio
http://brazilexporters.com/blog/index.php?blog=5&title=a_carretera_18&more=1&c=1&tb=1&pb=1
http://www.ruiamaraljr.blogspot.com
Para os fãs do Camillo, deem uma olhada aqui: http://bandeiraquadriculada.com.br/Camillo Christofaro.htm
E aquardem o livro “Bandeira Quadriculada”, acho que final de outubro ou inicio de novembro. Um presentão de Natal!
É muito bom recordar o passado, revendo essas essas magníficas máquinas que marcaram época nas corridas de rua e estradas. Eu lembro, era pequeno mas assisti algumas corridas na RS 030, com o Saudoso Julio Andreatta e Catarina Andreata e outros, mas desses dois eu lembro bem, pois o Julio Andreatta tinha um haras perto de onde eu morava na Venturoza.